Um dos temas mais relevantes do Direito Ambiental é, sem dúvida, a proteção da flora, pois as florestas e demais formas de vegetação desempenham relevante papel na preservação da biodiversidade e do equilíbrio entre os ecossistemas.
Infelizmente, a consciência ambientalista que se pretende consolidar neste início de século ainda não se mostrou suficientemente amadurecida para enfrentar e conter a vertente destruidora dos ecossistemas florestais, o que exige o recurso a mecanismos de caráter preventivo, coexistindo com as tradicionais formas de repressão e responsabilização civil e criminal pelos danos ecológicos.
No presente estudo, objetiva-se examinar o tratamento dispensado pela ordem jurídica às queimadas, prática agropastoril consuetudinária e bastante freqüente nas regiões norte e nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, empregada como forma de limpeza de campo, mas que produz grandes danos ao meio ambiente, porquanto destrói os nutrientes do solo, além de produzir poluição atmosférica de consideráveis proporções.
Importa, desde logo, destacar a necessidade de um tratamento integral à matéria, o que significa impulsionar os mecanismos preventivos, onde se insere com relevo a educação ambiental, única forma de mudar a mentalidade e os costumes da população rural, impregnada com tradições ancestrais e dotada de poucos recursos financeiros para aplicar novas técnicas agrícolas. Neste ponto, sugere-se o trabalho conjunto do Ministério Público como mediador entre o Poder Público e os diversos órgãos de apoio aos agricultores (EMATER, Sindicatos, etc...), a fim de que o repasse de novas tecnologias possa ser feito, aliado à conscientização da população sobre as conseqüências cíveis e criminais do emprego do fogo como forma de limpeza de campo. O mesmo raciocínio vale para questões relativas ao uso inadequado de agrotóxicos, corte de vegetação, etc., pois somente é possível esperar a mudança de comportamento com informação.
Ao lado das medidas preventivas, sem dúvida alguma deve-se recorrer ao instituto da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, impondo-se ao infrator o dever de recuperar o meio ambiente degradado, e, no caso da impossibilidade do retorno ao status quo ante, adotar medidas compensatórias dos danos ambientais, sem prejuízo do arbitramento de uma indenização. Compartilhamos do entendimento de DARLAN RODRIGUES BITTENCOURT e de RUCARDO KOCHINSKI MARCONDES, no sentido de que a indenização deve ser cominada em todos os casos, pois, "para uma maior efetividade do princípio do poluidor-pagador, não basta a cessação do dano e a recuperação do bem ambiental, mas o poluidor/degradador deverá indenizar a coletividade pela utilização perdida do "bem de uso comum do povo" . Vale esclarecer que esta indenização não constitui um bis in idem, pois não abrangerá o custo da recuperação in natura, o que ocorreria no caso de resultar a obrigação de fazer ou não fazer convertida em perdas e danos .
A respeito da responsabilidade civil, cumpre, então, examinar a legislação que inibe o uso do fogo em florestas e demais formas de vegetação, bem como protege o meio ambiente como um todo.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, no seu art. 225, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
No âmbito estadual, a Constituição Estadual de 1989 prevê no seu art. 250 que o meio ambiente é bem de uso comum do povo, e a manutenção de seu equilíbrio é essencial à sadia qualidade de vida.
No parágrafo 2º do art. 250, diz que "o causador de poluição ou dano ambiental será responsabilizado e deverá assumir ou ressarcir ao Estado, se for o caso, todos os custos financeiros, imediatos e futuros, decorrentes do saneamento do dano".
No art. 251, a Carta Estadual garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo ao Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.
No parágrafo 1º, inc. XIII, o mesmo dispositivo determina que:
"Par. 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, o Estado desenvolverá ações permanentes de proteção, restauração e fiscalização do meio ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente:
(...)
XIII - combater as queimadas, responsabilizando o usuário da terra por suas conseqüências".
A legislação específica em proteção florestal também protege as formas de vegetação contra o uso do fogo.
A Lei Federal nº 4771, de 15 de setembro de 1965, estabelece no seu art. 1º, que "as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidades às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta lei estabelecem".
O seu art. 27 prevê que:
"Art. 27 - É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação.
Parágrafo único: Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução".
O Decreto-Federal nº 2661, de 8 de julho de 1998, regulamentou o art. 27 acima transcrito. No seu art. 1º, veda o emprego de fogo nas florestas e demais formas de vegetação (inc. I). Apenas como exceção a esta regra genérica, admite a queima controlada.
No parágrafo único do art. 2º, define a queima controlada como "o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente estabelecidos".
Este dispositivo não vige no Estado do Rio Grande do Sul, porquanto o Código Florestal Estadual (Lei nº 9.519/92), no seu art. 28, diz ser proibido o uso de fogo ou queimadas nas florestas e demais formas de vegetação. Exclusivamente no caso de controle e eliminação de pragas e doenças, como forma de tratamento fitossanitário, o uso de fogo será admitido, desde que não seja de forma contínua, e dependerá de licença do órgão florestal competente.
A Constituição Federal de 1988 mudou profundamente o sistema de competências ambientais. A parte global das matérias ambientais pode ser legislada nos três planos: federal, estadual e municipal. Os estados têm competência para legislar em matéria ambiental sem que se precise provar que o assunto tem interesse estadual e/ou regional. Só encontrarão barreiras para legislar neste tema quando existir ou vier a existir norma geral federal, quando deverão procurar articular suas legislações com as legislações privativas da União.
O art. 23 da Carta Magna estabelece ser de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios preservar as florestas, a fauna e a flora (inc. VII). Já o art. 24 prevê ser da competência concorrente da União, estados e do Distrito Federal legislar sobre florestas, caça, pesca, Conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (inc. VI).
A regra, no caso da competência concorrente, é que à União cabe editar normas gerais, ficando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com a legislação suplementar. ALAOR CAFFÉ ALVES leciona que "nesse plano (da competência concorrente cumulativa), há o concurso de competências sob o mesmo título ou sob a mesma rubrica, porém, discriminadas sob aspectos diferentes pelo fato de cobrirem finalidades diversas. Exemplo dessa situação é a que temos na Região Metropolitana de São Paulo, pela aplicação da legislação de proteção aos mananciais. O Estado é competente, em nome do interesse metropolitano, para aplicar disposições referentes a índices urbanísticos, com o objetivo de condicionar as atividades particulares aos propósitos daquela proteção. Entretanto, essa faculdade não exclui a do município para aplicar disposições legais da mesma natureza, com objetivos diversos, inscritos em matéria de seu peculiar interesse. Em caso de discrepância entre tais dispositivos, prevalece a prescrição mais restritiva, não em razão da hierarquia das leis, que na hipótese vertente não existe, mas sim de sua eficácia, tendo em vista que o administrado está sob o influxo de duas ordens jurídicas autônomas, devendo subordinar-se a ambas"
JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma que "o princípio geral que norteia a repartição de competências entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograva conceituação satisfatória num século de vigência" .
Finalmente, ao tratar da repartição das competências na Constituição Federal de 1988 em matéria ambiental, HELITA BARREIRA CUSTÓDIO afirma que "por força da norma complementar do parágrafo 1º, do art. 24, da Constituição, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. Trata-se de normas gerais aplicáveis no âmbito nacional, de competência privativa da União, ajustáveis ao regime federativo, no sentido de orientar, harmonicamente, as medidas protecionais mínimas aplicáveis no território nacional (art. 24, par. 1º c/c par. 4º)" .
À luz da doutrina acima colacionada, pode-se concluir que o Decreto Federal nº 2661/98, ao regulamentar o art. 27 da Lei Federal nº 4771/65, não prevalece sobre a Constituição Estadual de 1989 e sobre o Código Florestal Estadual, porque estes abordam a proteção florestal sob a ótica das peculiaridades regionais, além do que são mais restritivos.
De qualquer forma, o Decreto Federal nº 2.661/98, ao nosso ver, não descaracteriza o caráter excepcionalíssimo das queimadas, porquanto somente admite a queima controlada como fator de produção e manejo em atividades agropastoris e mediante prévia obtenção de autorização de órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente com atuação na área onde se realizará a operação (arts. 3º e 4º), e impõe inúmeras providências preventivas e acautelatórias. Além disso, a autorização de queima controlada somente será emitida após a realização de vistoria prévia obrigatória em áreas que contenham restos de exploração florestal, limítrofes às sujeitas a regime especial de proteção (art. 7º).
Para instruir o pedido de autorização, o interessado deve obedecer os requisitos do art. 4º do Decreto em comento, quais sejam:
I - definir as técnicas, os equipamentos e a mão-de-obra a serem utilizados;
II - fazer o reconhecimento da área e avaliar o material a ser queimado;
III - promover o enleiramento dos resíduos de vegetação, de forma a limitar a ação do fogo;
IV - preparar aceiros de no mínimo três metros de largura, ampliando esta faixa quando as condições ambientais, topográficas, climáticas e o material combustível a determinarem;
V - providenciar pessoal treinado para atuar no local da operação, com equipamentos apropriados ao redor da área, e evitar propagação do fogo fora dos limites estabelecidos;
VI - comunicar formalmente aos confrontantes a intenção de realizar a queima controlada, com o esclarecimento de que, oportunamente, e com a antecedência necessária, a operação será confirmada com a indicação da data, hora e início e do local onde será realizada a queima;
Infelizmente, a consciência ambientalista que se pretende consolidar neste início de século ainda não se mostrou suficientemente amadurecida para enfrentar e conter a vertente destruidora dos ecossistemas florestais, o que exige o recurso a mecanismos de caráter preventivo, coexistindo com as tradicionais formas de repressão e responsabilização civil e criminal pelos danos ecológicos.
No presente estudo, objetiva-se examinar o tratamento dispensado pela ordem jurídica às queimadas, prática agropastoril consuetudinária e bastante freqüente nas regiões norte e nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, empregada como forma de limpeza de campo, mas que produz grandes danos ao meio ambiente, porquanto destrói os nutrientes do solo, além de produzir poluição atmosférica de consideráveis proporções.
Importa, desde logo, destacar a necessidade de um tratamento integral à matéria, o que significa impulsionar os mecanismos preventivos, onde se insere com relevo a educação ambiental, única forma de mudar a mentalidade e os costumes da população rural, impregnada com tradições ancestrais e dotada de poucos recursos financeiros para aplicar novas técnicas agrícolas. Neste ponto, sugere-se o trabalho conjunto do Ministério Público como mediador entre o Poder Público e os diversos órgãos de apoio aos agricultores (EMATER, Sindicatos, etc...), a fim de que o repasse de novas tecnologias possa ser feito, aliado à conscientização da população sobre as conseqüências cíveis e criminais do emprego do fogo como forma de limpeza de campo. O mesmo raciocínio vale para questões relativas ao uso inadequado de agrotóxicos, corte de vegetação, etc., pois somente é possível esperar a mudança de comportamento com informação.
Ao lado das medidas preventivas, sem dúvida alguma deve-se recorrer ao instituto da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, impondo-se ao infrator o dever de recuperar o meio ambiente degradado, e, no caso da impossibilidade do retorno ao status quo ante, adotar medidas compensatórias dos danos ambientais, sem prejuízo do arbitramento de uma indenização. Compartilhamos do entendimento de DARLAN RODRIGUES BITTENCOURT e de RUCARDO KOCHINSKI MARCONDES, no sentido de que a indenização deve ser cominada em todos os casos, pois, "para uma maior efetividade do princípio do poluidor-pagador, não basta a cessação do dano e a recuperação do bem ambiental, mas o poluidor/degradador deverá indenizar a coletividade pela utilização perdida do "bem de uso comum do povo" . Vale esclarecer que esta indenização não constitui um bis in idem, pois não abrangerá o custo da recuperação in natura, o que ocorreria no caso de resultar a obrigação de fazer ou não fazer convertida em perdas e danos .
A respeito da responsabilidade civil, cumpre, então, examinar a legislação que inibe o uso do fogo em florestas e demais formas de vegetação, bem como protege o meio ambiente como um todo.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, no seu art. 225, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
No âmbito estadual, a Constituição Estadual de 1989 prevê no seu art. 250 que o meio ambiente é bem de uso comum do povo, e a manutenção de seu equilíbrio é essencial à sadia qualidade de vida.
No parágrafo 2º do art. 250, diz que "o causador de poluição ou dano ambiental será responsabilizado e deverá assumir ou ressarcir ao Estado, se for o caso, todos os custos financeiros, imediatos e futuros, decorrentes do saneamento do dano".
No art. 251, a Carta Estadual garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo ao Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.
No parágrafo 1º, inc. XIII, o mesmo dispositivo determina que:
"Par. 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, o Estado desenvolverá ações permanentes de proteção, restauração e fiscalização do meio ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente:
(...)
XIII - combater as queimadas, responsabilizando o usuário da terra por suas conseqüências".
A legislação específica em proteção florestal também protege as formas de vegetação contra o uso do fogo.
A Lei Federal nº 4771, de 15 de setembro de 1965, estabelece no seu art. 1º, que "as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidades às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta lei estabelecem".
O seu art. 27 prevê que:
"Art. 27 - É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação.
Parágrafo único: Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução".
O Decreto-Federal nº 2661, de 8 de julho de 1998, regulamentou o art. 27 acima transcrito. No seu art. 1º, veda o emprego de fogo nas florestas e demais formas de vegetação (inc. I). Apenas como exceção a esta regra genérica, admite a queima controlada.
No parágrafo único do art. 2º, define a queima controlada como "o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente estabelecidos".
Este dispositivo não vige no Estado do Rio Grande do Sul, porquanto o Código Florestal Estadual (Lei nº 9.519/92), no seu art. 28, diz ser proibido o uso de fogo ou queimadas nas florestas e demais formas de vegetação. Exclusivamente no caso de controle e eliminação de pragas e doenças, como forma de tratamento fitossanitário, o uso de fogo será admitido, desde que não seja de forma contínua, e dependerá de licença do órgão florestal competente.
A Constituição Federal de 1988 mudou profundamente o sistema de competências ambientais. A parte global das matérias ambientais pode ser legislada nos três planos: federal, estadual e municipal. Os estados têm competência para legislar em matéria ambiental sem que se precise provar que o assunto tem interesse estadual e/ou regional. Só encontrarão barreiras para legislar neste tema quando existir ou vier a existir norma geral federal, quando deverão procurar articular suas legislações com as legislações privativas da União.
O art. 23 da Carta Magna estabelece ser de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios preservar as florestas, a fauna e a flora (inc. VII). Já o art. 24 prevê ser da competência concorrente da União, estados e do Distrito Federal legislar sobre florestas, caça, pesca, Conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (inc. VI).
A regra, no caso da competência concorrente, é que à União cabe editar normas gerais, ficando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com a legislação suplementar. ALAOR CAFFÉ ALVES leciona que "nesse plano (da competência concorrente cumulativa), há o concurso de competências sob o mesmo título ou sob a mesma rubrica, porém, discriminadas sob aspectos diferentes pelo fato de cobrirem finalidades diversas. Exemplo dessa situação é a que temos na Região Metropolitana de São Paulo, pela aplicação da legislação de proteção aos mananciais. O Estado é competente, em nome do interesse metropolitano, para aplicar disposições referentes a índices urbanísticos, com o objetivo de condicionar as atividades particulares aos propósitos daquela proteção. Entretanto, essa faculdade não exclui a do município para aplicar disposições legais da mesma natureza, com objetivos diversos, inscritos em matéria de seu peculiar interesse. Em caso de discrepância entre tais dispositivos, prevalece a prescrição mais restritiva, não em razão da hierarquia das leis, que na hipótese vertente não existe, mas sim de sua eficácia, tendo em vista que o administrado está sob o influxo de duas ordens jurídicas autônomas, devendo subordinar-se a ambas"
JOSÉ AFONSO DA SILVA afirma que "o princípio geral que norteia a repartição de competências entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograva conceituação satisfatória num século de vigência" .
Finalmente, ao tratar da repartição das competências na Constituição Federal de 1988 em matéria ambiental, HELITA BARREIRA CUSTÓDIO afirma que "por força da norma complementar do parágrafo 1º, do art. 24, da Constituição, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. Trata-se de normas gerais aplicáveis no âmbito nacional, de competência privativa da União, ajustáveis ao regime federativo, no sentido de orientar, harmonicamente, as medidas protecionais mínimas aplicáveis no território nacional (art. 24, par. 1º c/c par. 4º)" .
À luz da doutrina acima colacionada, pode-se concluir que o Decreto Federal nº 2661/98, ao regulamentar o art. 27 da Lei Federal nº 4771/65, não prevalece sobre a Constituição Estadual de 1989 e sobre o Código Florestal Estadual, porque estes abordam a proteção florestal sob a ótica das peculiaridades regionais, além do que são mais restritivos.
De qualquer forma, o Decreto Federal nº 2.661/98, ao nosso ver, não descaracteriza o caráter excepcionalíssimo das queimadas, porquanto somente admite a queima controlada como fator de produção e manejo em atividades agropastoris e mediante prévia obtenção de autorização de órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente com atuação na área onde se realizará a operação (arts. 3º e 4º), e impõe inúmeras providências preventivas e acautelatórias. Além disso, a autorização de queima controlada somente será emitida após a realização de vistoria prévia obrigatória em áreas que contenham restos de exploração florestal, limítrofes às sujeitas a regime especial de proteção (art. 7º).
Para instruir o pedido de autorização, o interessado deve obedecer os requisitos do art. 4º do Decreto em comento, quais sejam:
I - definir as técnicas, os equipamentos e a mão-de-obra a serem utilizados;
II - fazer o reconhecimento da área e avaliar o material a ser queimado;
III - promover o enleiramento dos resíduos de vegetação, de forma a limitar a ação do fogo;
IV - preparar aceiros de no mínimo três metros de largura, ampliando esta faixa quando as condições ambientais, topográficas, climáticas e o material combustível a determinarem;
V - providenciar pessoal treinado para atuar no local da operação, com equipamentos apropriados ao redor da área, e evitar propagação do fogo fora dos limites estabelecidos;
VI - comunicar formalmente aos confrontantes a intenção de realizar a queima controlada, com o esclarecimento de que, oportunamente, e com a antecedência necessária, a operação será confirmada com a indicação da data, hora e início e do local onde será realizada a queima;
VII - prever a realização da queima em dia e horário apropriados, evitando-se os períodos de temperatura mais elevada e respeitando-se as condições dos ventos predominantes no momento da operação;
VIII - providenciar o oportuno acompanhamento de toda a operação de queima, até sua extinção, com vistas à adoção de medidas adequadas de contenção do fogo na área definida para o emprego do fogo.
Assim, pode-se concluir esta primeira parte da exposição confirmando o caráter excepcional da permissão à prática das queimadas no contexto das legislações federal e estadual. Veja-se que na legislação federal o emprego do fogo somente é permitido em práticas agropastoris e florestais mediante queima controlada. A legislação estadual é ainda mais restritiva, pois não permite o uso do fogo em práticas agropastoris, e admite a queima controlada apenas nos casos de controle e eliminação de pragas e doenças, como forma de tratamento fitossanitário. Nesta hipótese, a queima também é controlada pelo Poder Público (parágrafo 2º, art. 28), embora não se submete ao Decreto Federal 2661/98, cujo art. 23 refere que "continua regido pela legislação própria o emprego do fogo para o combate a pragas e doenças da agropecuária e em operações de controle fitossanitário, a cujos procedimentos não se aplicam as normas deste Decreto".
As restrições ao direito à propriedade privada impostas pela legislação federal e estadual comentadas justificam-se pelo caráter difuso do meio ambiente, cuja titularidade é exercida pelas presentes e futuras gerações, que têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental, equiparável ao direito à vida e à saúde. Justificam-se, ainda, pelo interesse público que permeia a proteção ambiental, e que sempre prevalecerá sobre o interesse privado.
Armando Henrique Dias Cabral preconizava que "a propriedade privada não se tornou algo intocável: desde que o seu uso se desencontre de sua função social, vale dizer, do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, à tranqüilidade pública, ao respeito às demais propriedades, à estética urbana e aos direitos individuais ou coletivos, seja ou não por matéria ou energia poluente, o Poder Público tem o dever de limitá-la administrativamente" . Fábio Dutra Lucarelli, colacionando Salvatore Patti, também prescreve, com relação ao direito de propriedade, que "a exigência de tutelar o ambiente determinou uma restrição dos poderes do proprietário e uma acentuação da função social da propriedade (...) A concessão do direito ao ambiente que prescinde da titularidade do direito real e necessariamente comporta possibilidade de inquirir o ato de exercício lesivo do proprietário significa, a nosso ver, uma considerável brecha na visão egoísta da propriedade, da qual derivava a salvação de todo ato de exercício do direito útil ao proprietário" .
A doutrina portuguesa tem vislumbrado progressivamente nas relações de vizinhança a influência da noção ambiente, considerando o direito de propriedade dialeticamente transformado pelo direito ao ambiente. "(...) pode-se ver um direito de propriedade privada não apenas comprimido pelo empolamento de outros direitos conflitantes, mas também um direito dialeticamente transformado pela interação que, no seu interior, se processa com o direito do ambiente, direito este cujo instrumento de ação ou contradição é o dever de todos os cidadãos defenderem o ambiente. Dever este que é como que o reverso da medalha, quando em confronto com o direito correspondente e a que o proprietário, enquanto tal, não pode fugir (...) Trata-se da aceitação do direito de propriedade como um direito limitado e, neste caso, limitado pelo direito ao ambiente (...) Na verdade, poder-se-á dizer que a problemática do ambiente veio reforçar a função social do direito de propriedade tornando os seus limites mais flexíveis" .
VIII - providenciar o oportuno acompanhamento de toda a operação de queima, até sua extinção, com vistas à adoção de medidas adequadas de contenção do fogo na área definida para o emprego do fogo.
Assim, pode-se concluir esta primeira parte da exposição confirmando o caráter excepcional da permissão à prática das queimadas no contexto das legislações federal e estadual. Veja-se que na legislação federal o emprego do fogo somente é permitido em práticas agropastoris e florestais mediante queima controlada. A legislação estadual é ainda mais restritiva, pois não permite o uso do fogo em práticas agropastoris, e admite a queima controlada apenas nos casos de controle e eliminação de pragas e doenças, como forma de tratamento fitossanitário. Nesta hipótese, a queima também é controlada pelo Poder Público (parágrafo 2º, art. 28), embora não se submete ao Decreto Federal 2661/98, cujo art. 23 refere que "continua regido pela legislação própria o emprego do fogo para o combate a pragas e doenças da agropecuária e em operações de controle fitossanitário, a cujos procedimentos não se aplicam as normas deste Decreto".
As restrições ao direito à propriedade privada impostas pela legislação federal e estadual comentadas justificam-se pelo caráter difuso do meio ambiente, cuja titularidade é exercida pelas presentes e futuras gerações, que têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental, equiparável ao direito à vida e à saúde. Justificam-se, ainda, pelo interesse público que permeia a proteção ambiental, e que sempre prevalecerá sobre o interesse privado.
Armando Henrique Dias Cabral preconizava que "a propriedade privada não se tornou algo intocável: desde que o seu uso se desencontre de sua função social, vale dizer, do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, à tranqüilidade pública, ao respeito às demais propriedades, à estética urbana e aos direitos individuais ou coletivos, seja ou não por matéria ou energia poluente, o Poder Público tem o dever de limitá-la administrativamente" . Fábio Dutra Lucarelli, colacionando Salvatore Patti, também prescreve, com relação ao direito de propriedade, que "a exigência de tutelar o ambiente determinou uma restrição dos poderes do proprietário e uma acentuação da função social da propriedade (...) A concessão do direito ao ambiente que prescinde da titularidade do direito real e necessariamente comporta possibilidade de inquirir o ato de exercício lesivo do proprietário significa, a nosso ver, uma considerável brecha na visão egoísta da propriedade, da qual derivava a salvação de todo ato de exercício do direito útil ao proprietário" .
A doutrina portuguesa tem vislumbrado progressivamente nas relações de vizinhança a influência da noção ambiente, considerando o direito de propriedade dialeticamente transformado pelo direito ao ambiente. "(...) pode-se ver um direito de propriedade privada não apenas comprimido pelo empolamento de outros direitos conflitantes, mas também um direito dialeticamente transformado pela interação que, no seu interior, se processa com o direito do ambiente, direito este cujo instrumento de ação ou contradição é o dever de todos os cidadãos defenderem o ambiente. Dever este que é como que o reverso da medalha, quando em confronto com o direito correspondente e a que o proprietário, enquanto tal, não pode fugir (...) Trata-se da aceitação do direito de propriedade como um direito limitado e, neste caso, limitado pelo direito ao ambiente (...) Na verdade, poder-se-á dizer que a problemática do ambiente veio reforçar a função social do direito de propriedade tornando os seus limites mais flexíveis" .
No direito pátrio, em razão de o valor ambiental permear todo o sistema jurídico, a doutrina, a partir da concepção da função social da propriedade, prevista no art. 5º, inc. XXIII , art. 170, inc. III , art. 182, parágrafo 2º , art. 186, incisos I e II , elaborou a concepção da "função social ambiental" da propriedade, que consiste em uma atividade do proprietário e do Poder Público exercida como poder-dever em favor da sociedade, titular do direito difuso ao meio ambiente.
Esta definição parte do conceito de função, que surge no direito público, "quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto ao seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, 'deveres-poderes', no interesse alheio" .
Alinhado com esta definição, Álvaro Luiz Valery Mirra refere que "a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício de direito de propriedade como aquela restrição tradicional por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício de seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeque à preservação do meio ambiente" . No mesmo sentido é a lição de Eros Roberto Grau, ao afirmar que o princípio da função social da propriedade (o que também diz respeito ao meio ambiente) atua "como fonte de imposição de comportamentos positivos - prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer - ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia" .
Édis Milaré sustenta que é em virtude do princípio da função socioambiental da propriedade é que se tem defendido a possibilidade de imposição ao proprietário rural do dever de recomposição da vegetação em áreas de preservação permanente e reserva legal, mesmo que não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento, "certo que tal obrigação possui caráter real - pro tempore - isto é, uma obrigação que se prende ao titular do direito real, seja ele quem for, bastando para tanto sua simples condição de proprietário ou possuidor" . Afirma a impossibilidade de se afirmar o direito adquirido na exploração destas terras, pois, "com a Constituição Federal de 1988, só fica reconhecido o direito de propriedade quando cumprida a função social ambiental, como seu pressuposto e elemento integrante, pena de impedimento ao livre exercício ou até de perda desse direito" .
Ao lado da idéia de função social ambiental da propriedade, Antônio Herman Benjamin vislumbra a noção de "função ambiental" propriamente dita, conceituada como atividade finalisticamente dirigida à tutela do meio ambiente, caracterizando-se pela relevância global, homogeneidade de regime e manifestação através de um dever-poder . Conforme esta visão, o ordenamento não mais de contenta com o "não poluir" por parte do cidadão, exigindo que este cumpra um munus que vali além do mero não poluir: o dever de defender, o dever de reparar e o dever de preservar, este último conceito amplo que traz para o cidadão uma proibição (não poluir) e uma obrigação positiva (impedir o poluir alheio).
As restrições à propriedade privada também justificam-se pela concepção de desenvolvimento econômico sustentável, conceito este formatado pelos princípios do Direito Ambiental da prevenção/precaução, do poluidor-pagador e da reparação. Ao zelar pelo direito das gerações futuras, a Carta Magna parte da premissa que cada geração é, ao mesmo tempo, usuária e guardiã do patrimônio comum natural e cultural, e assim deveria deixá-lo para as gerações futuras em condições não piores do que o recebeu. Daí a imposição de medidas preventivas e repressivas, que limitam o livre exercício do direito da propriedade, tendentes a proteger este patrimônio .
Merece, ainda, ser examinado, ainda que brevemente, o tratamento penal dispensado ao uso do fogo nas florestas e demais formas de vegetação. Desde logo, destacamos que a contravenção penal prevista na letra "e" do art. 26 do Código Florestal Federal continua em vigor. Prevê este dispositivo que: "Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o salário mínimo mensal do lugar e da data da infração ou ambas as penas cumulativamente fazer fogo, por qualquer modo, em florestas e demais formas de vegetação, sem tomar as precauções adequadas".
Esta contravenção não exige conduta dolosa, mas apenas a voluntariedade do agente em fazer fogo, sem tomar as precauções adequadas. Tampouco exige a existência de perigo, ao contrário do que ocorre no crime de incêndio, tipificado no art. 250 do Código Penal e no art. 41 da Lei 6.905/98 .
A coexistência destes dispositivos legais é defendida por NICOLAO DINO DE CASTRO E COSTA NETTO, ao destacar as peculiaridades de cada tipo penal. Salienta que o art. 41 da Lei 9.605/98 refere-se especificamente a matas e/ou florestas, tendo como bem jurídico protegido o patrimônio ambiental. O incêndio provocado em outras formas de vegetação que não se enquadrem nesse binômio continuam a ser punidos, dessa forma, a título de contravenção penal, alcançando, pois, inúmeras práticas de queimadas realizadas sem as cautelas devidas . Ademais, o art. 41 tipificou provocar "incêndio" em mata ou floresta, o que significa o fogo não controlado, perigoso; ao passo que a contravenção penal satisfaz-se com o mero "fazer fogo", que não acarreta perigo ou descontrole. Por outro lado, o crime de incêndio, previsto no Código Penal, é crime de perigo comum, que tutela a incolumidade pública, aumentados e a pena se o incêndio se der em lavoura, pastagem, mata ou floresta . Não haverá concurso de crimes, mas concurso aparente de normas, resolvido pelo princípio da subsidiariedade tácita, já que o elemento constitutivo do crime ambiental (dano à flora) previsto na Lei 9.605/98 configura circunstância modificativa da pena do tipo previsto no Código Penal. Portanto, incêndio em floresta ou mata somente constituirá o delito do art. 41 da lei especial se não ocorrer perigo comum à vida, à integridade física ou ao patrimônio de outrem.
ELÁDIO LECEY compartilha deste entendimento, aduzindo que as "queimadas, desde que efetuadas sem as cautelas indispensáveis, não obstante ter sido vetado o art. 43 da Lei 9.605/98, constituirão a contravenção do art. 26, alínea 'e', se não houver proporção tamanha a caracterizar incêndio. As precauções devem ser entendidas como o cuidado, a cautela que o fazer fogo exige, como, exemplificativamente, análise da direção do vento, colocação de avisos no local e, principalmente, o aceiro, a 'limpeza' do terreno em volta da área a ser atingida pelo fogo" .
Neste sentido, também é a jurisprudência: "A contravenção prevista no Código Florestal, alusiva à queimada sem as cautelas legais, somente subsiste quando não acarreta o perigo comum a que se refere o contexto da lei penal. Desde que tal perigo ocorra, o caso se tipifica como incêndio culposo, a que alude o art. 250, do CP"(TACRIM -SP - AC - Rel. Adriano Marrey, RT 218/410).
Feitas estas considerações, esperamos termos contribuído para o enfrentamento da matéria por parte do Ministério Público, e destacamos a importância de um posicionamento homogêneo por parte dos membros desta instituição frente às questões ambientais.
Annelise Monteiro Steigleder
Promotora de Justiça
Fonte: http://www.mp.rs.gov.br/ambiente/doutrina/id18.htm